O golpe de 1937 não deve ser visto apenas como ruptura, mas como produto de um processo de concentração gradual de poder iniciado em 1930. Vargas explorou as fissuras entre elites regionais, liberais e forças emergentes, manipulando o discurso de “ordem” para justificar medidas excepcionais. O Brasil, ainda majoritariamente agrário, apresentava vulnerabilidades institucionais que facilitaram o advento de uma ditadura personalizada. Esse quadro criou as condições para a consolidação do Estado Novo.¹
O Plano Cohen, divulgado como denúncia de conspiração comunista, foi elemento central nesse processo. Supostamente redigido por membros da Internacional Comunista, descrevia incêndios, sequestros e perseguições religiosas. Na realidade, tratava-se de um documento fabricado por integralistas, notadamente Olímpio Mourão Filho.² A farsa, ao ser lida em rede nacional, mobilizou o medo das elites e a indignação de setores médios urbanos, servindo como justificativa para a centralização autoritária.
O impacto do Plano Cohen foi imediato. Sob o pretexto de evitar a “bolchevização” do Brasil, Vargas obteve apoio decisivo do ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e do alto oficialato.³ O Congresso foi dissolvido, as eleições suspensas e o Estado Novo instaurado em novembro de 1937. A narrativa do perigo comunista, embora infundada, consolidou-se como mito político, repetido e internalizado em discursos oficiais posteriores.
A Constituição de 1937, conhecida como “Polaca”, foi a peça jurídica que formalizou o novo regime. Inspirada na Carta autoritária da Polônia, atribuída a Józef Piłsudski, centralizava poderes no Executivo, permitindo ao presidente legislar por decretos, dissolver assembleias e nomear interventores estaduais.⁴ Era, na prática, a negação do constitucionalismo liberal. O texto transformou Vargas em árbitro supremo, concentrando prerrogativas típicas de regimes totalitários.
Essa constituição suprimiu partidos políticos, restringiu liberdades civis e anulou o pluralismo. O Congresso, esvaziado, deixou de funcionar como espaço de negociação. A cidadania política foi amputada, e sindicatos passaram a depender da autorização estatal. Não se tratava apenas de restringir direitos, mas de refazer a ordem política em torno da figura presidencial. Por isso, a historiografia a caracteriza como um dos marcos mais autoritários da história constitucional brasileira.
O regime não se sustentaria apenas pela coerção; era preciso criar consenso. Nesse sentido, a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939, foi fundamental.⁵ O DIP controlava rigidamente jornais, rádios, editoras e o cinema. Nenhuma informação circulava sem aprovação prévia. A inspiração era clara: organismos semelhantes operavam na Alemanha nazista e na Itália fascista, revelando a inserção do Brasil em uma lógica internacional de regimes autoritários.
O DIP não apenas censurava: também produzia uma estética oficial. Programas de rádio transmitiam discursos presidenciais em cadeia, cinejornais mostravam obras públicas em tom épico e cartazes exaltavam Vargas como salvador da pátria. A manipulação simbólica transformava o governante em mito nacional. O controle da informação foi tão eficaz que muitos brasileiros tinham dificuldade em acessar visões alternativas sobre o país.
Foi nesse ambiente que emergiu a imagem de Vargas como “Pai dos Pobres”.⁶ A alcunha, cuidadosamente construída, era sustentada pela retórica paternalista e pela política trabalhista. A CLT (1943) e medidas como férias remuneradas e jornada de 8 horas foram apresentadas como dádivas do presidente. O resultado foi um vínculo de lealdade emocional entre trabalhadores urbanos e a figura de Vargas, perpetuado por décadas.
Essa imagem foi amplificada por fotografias, discursos e até músicas populares. O presidente aparecia como protetor dos humildes, ainda que a contrapartida fosse a submissão política. Trabalhadores conquistavam direitos, mas ao preço da tutela estatal sobre sindicatos. Era uma relação paradoxal: ampliava-se a cidadania social, mas restringia-se a cidadania política. Essa tensão marcou profundamente a cultura política brasileira.
Ao mesmo tempo, a censura sufocava a diversidade cultural. Jornalistas críticos eram perseguidos, escritores tinham obras apreendidas e artistas eram obrigados a adaptar suas produções.⁷ O espaço público tornou-se homogêneo, com vozes críticas silenciadas. O medo de represálias fez com que muitos intelectuais migrassem para uma postura de acomodação ou de neutralidade aparente, estratégia de sobrevivência diante da repressão.
A música popular, por exemplo, foi moldada ao gosto oficial. Sambas e marchinhas exaltavam a pátria e o trabalho, enquanto letras que insinuassem crítica eram vetadas. O DIP, nesse sentido, não apenas restringia, mas orientava a criação. A arte foi transformada em ferramenta pedagógica de um nacionalismo disciplinador, construindo um imaginário de coesão em torno do Estado.
No campo político, os comunistas foram alvo preferencial. Desde a Intentona de 1935, Vargas explorava a figura do “inimigo interno” para justificar medidas repressivas. Militantes foram encarcerados em prisões insalubres, como a Colônia Correcional da Ilha Grande, e submetidos a torturas documentadas em relatórios posteriores.⁸ O anticomunismo foi mais que discurso: converteu-se em política de Estado.
Os integralistas, por sua vez, experimentaram uma relação oscilante com Vargas.⁹ Inicialmente, apoiaram o fortalecimento do Executivo, mas logo perceberam que não teriam espaço no novo arranjo político. Em maio de 1938, organizaram o Levante Integralista, uma tentativa de golpe contra Vargas no Palácio Guanabara. Reprimidos com violência, foram desarticulados, e a Ação Integralista Brasileira dissolveu-se.
O aparato repressivo se consolidou por meio do DOPS e da polícia política. Informantes infiltravam-se em fábricas, sindicatos e universidades, produzindo relatórios minuciosos sobre opositores. A delação e o medo passaram a fazer parte da vida cotidiana. Essa rede de vigilância contribuiu para um ambiente de autocensura, no qual a prudência substituía a crítica aberta, consolidando o controle estatal sobre a sociedade civil.
A cultura, por outro lado, foi instrumentalizada como arma de legitimação. O rádio tornou-se veículo central, com a Hora do Brasil transformando-se em ritual cotidiano. O cinema, por meio dos cinejornais, difundia uma estética grandiosa do regime. Até a música popular urbana, como o samba, foi apropriada para narrar uma identidade nacional homogênea, vinculada à disciplina, ao trabalho e à obediência.
O trabalhismo foi o eixo de sustentação simbólica do Estado Novo.¹⁰ A CLT, promulgada em 1943, não apenas unificou legislações existentes, mas criou um marco de intervenção estatal sem precedentes. Férias remuneradas, descanso semanal, regulamentação sindical e jornada de oito horas transformaram-se em instrumentos de conquista. Mas, ao mesmo tempo, consolidavam a dependência dos trabalhadores em relação ao Estado e à figura presidencial.
O salário mínimo, instituído em 1940, teve papel decisivo na legitimação do regime. Embora insuficiente para atender plenamente às necessidades básicas, representava um reconhecimento do valor do trabalho pelo Estado. A propaganda oficial reforçava a ideia de que Vargas havia concedido tal benefício como ato de generosidade. Dessa forma, o Estado Novo estabeleceu uma relação de patronagem entre governante e governados.
Na economia, o projeto de industrialização adquiriu centralidade. A criação da Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, contou com financiamento norte-americano obtido em troca da cessão de bases aéreas no Nordeste.¹¹ Esse episódio revela o pragmatismo diplomático de Vargas: ao mesmo tempo em que mantinha negociações com a Alemanha, obtinha vantagens com os Estados Unidos. A industrialização emergiu, assim, como contrapartida da geopolítica.
As mulheres permaneceram, em grande medida, confinadas a papéis tradicionais. A propaganda oficial enaltecia a figura da mãe e do lar, relegando à mulher funções domésticas e de guardiã da moral. Embora algumas tenham ocupado espaços no magistério e em atividades burocráticas, sua participação política foi mínima. A retórica do Estado Novo reforçava o ideal conservador de gênero.
A juventude foi objeto de intensa mobilização. Programas educativos exaltavam valores como disciplina, patriotismo e culto ao trabalho. Clubes juvenis, inspirados em experiências fascistas europeias, buscavam moldar mentalidades. A escola tornava-se espaço de formação política, mais do que de instrução intelectual. Esse investimento revela a tentativa de perpetuar o regime através da formação de uma nova geração disciplinada e obediente.
No cenário internacional, Vargas manteve postura ambígua até 1942. De um lado, negociava com a Alemanha, de quem recebia equipamentos industriais. De outro, aproximava-se dos Estados Unidos, que buscavam garantir bases estratégicas no Atlântico Sul.¹² Essa política pendular permitiu ganhos econômicos, mas se mostrou insustentável diante do avanço da guerra.
O afundamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães, em 1942, provocou comoção nacional.¹³ Manifestações populares exigiram retaliação imediata. A neutralidade tornou-se insustentável, e o Brasil declarou guerra ao Eixo. Essa decisão reposicionou o país no tabuleiro internacional e abriu espaço para acordos mais estreitos com Washington, fortalecendo o processo de industrialização interna.
A Força Expedicionária Brasileira (FEB) foi, então, organizada. Cerca de 25 mil homens foram enviados à Itália em 1944.¹⁴ Lutaram em batalhas duras, como Monte Castelo, e demonstraram disciplina e coragem reconhecidas pelos Aliados. A FEB simbolizou a entrada definitiva do Brasil no cenário internacional, quebrando a imagem de país periférico.
Contudo, a participação na guerra expôs um paradoxo incontornável: combatia-se o fascismo na Europa enquanto se vivia sob um regime autoritário em casa. Essa contradição corroeu a legitimidade do Estado Novo e alimentou as pressões internas pela redemocratização. O discurso oficial já não conseguia sustentar a coerência entre prática e retórica.
As contradições do regime, aliás, são centrais para compreendê-lo. Vargas foi ditador que perseguiu opositores, mas também o estadista que institucionalizou direitos trabalhistas. Essa dualidade, frequentemente descrita como populismo, fazia parte de uma estratégia deliberada: conceder benefícios sociais em troca de fidelidade política. O Estado tornava-se tutor dos trabalhadores, reforçando a lógica paternalista.
A historiografia mostra que tais concessões eram instrumentos de controle. Sindicatos foram submetidos ao Ministério do Trabalho, e greves proibidas.¹⁵ O discurso da cidadania social escondia a ausência de cidadania política. O Estado Novo não permitia autonomia, mas subordinação. Esse arranjo, no entanto, consolidou o varguismo como referência para amplos setores da sociedade.
Em 1945, o contexto internacional de vitória dos Aliados contra o nazifascismo inviabilizava a continuidade do Estado Novo. Movimentos estudantis, setores militares e parte da imprensa pressionavam pela redemocratização. Vargas tentou resistir, inclusive incentivando a candidatura de Dutra, mas já não possuía o mesmo apoio político. Sua permanência tornou-se insustentável.
As Forças Armadas, que haviam sido pilar do regime, tornaram-se seu algoz. Em outubro de 1945, depuseram Vargas em um movimento quase sem resistência.¹⁶ A transição marcou o fim da ditadura e o início de um novo ciclo democrático. Vargas, contudo, não desapareceu: seu retorno em 1951 prova a resiliência do varguismo como força política.
O legado do Estado Novo permanece ambíguo. A CLT e o salário mínimo consolidaram direitos trabalhistas duradouros. Ao mesmo tempo, a cultura política autoritária reforçou a lógica de concentração e tutela do Estado sobre a sociedade.¹⁷ Essa herança dupla, de modernização e repressão, continua a influenciar a política brasileira até hoje.
O Estado Novo, portanto, não deve ser interpretado de forma maniqueísta. Foi ditadura que reprimiu, mas também governo que modernizou. Populismo e autoritarismo coexistiram, compondo um regime paradoxal. Sua análise demanda uma perspectiva crítica, capaz de reconhecer as complexidades de um período que moldou, de maneira profunda, a trajetória política e social do Brasil contemporâneo.
